INDÚSTRIAS CULTURAIS /3

DA ECONOMIA DA REPRESENTAÇÃO À ECONOMIA DA RELAÇÃO /3

Nos artigos anteriores analisámos, em primeiro lugar, os aspectos relacionados com a “desmaterialização” dos “conteúdos culturais” e a emergência da “sociedade em rede” e, de seguida, procurámos compreender como a transfiguração ocorrida, durante os últimos quarenta anos, no que diz respeito aos modos de representação e individuação do “sujeito moderno” alterou, de modo decisivo, a configuração do espaço social e, em particular, do “campo cultural”.  Concluímos o artigo sublinhando que é na confluência desta nova configuração do “sujeito pós-moderno” com a eclosão da “revolução tecnológica” e das “sociedades em rede” (e do novo modelo económico e social que lhe subjaz) que se situa a mudança de paradigma em curso.

Neste artigo iremos analisar duas dimensões espcíficas que marcam a dinâmica desta confluência e perceber o modo como elas afectam as lógicas do consumo e, por tabela, os modos de operar do sector cultural. Ambas estas dimensões são, de algum modo, um reflexo da “modernidade líquida” (conceito desenvolvido pelo  filosófo e sociólogo Zygmunt Bauman) e uma consequência da noção de “fluxo” que permeia hoje as sociedades de mercado.

A primeira destas dimensões que importa referir prende-se, grosso modo, com o impacto que a comunicação em “tempo real” teve sobre os modos de “percepção” do sujeito contemporâneo. Autores como Jonathan Crary têm-se debruçado, de forma exaustiva e exemplar, sobre como os “regimes de atenção” foram evoluindo desde o início da Revolução Industrial e como as formas de “olhar” e “construir”  o real estão intimente ligadas à evolução das tecnologias (fotografia, cinema, etc.) e, em especial, aos “factores de aceleração” que elas impuseram (implicando uma constante reconfiguração dos modos de percepção, mediação e articulação com o “real”).

Se é certo que, como Hartmut Rosa nota, a “modernidade” foi, desde sempre, marcada pela sua paixão pelo “movimento” - podendo a “aceleração” económica, social e técnica que atravessa o século XX ser entendida, deste ponto de vista, apenas como a consequência “natural” da ideia de “Progresso” constitutiva do “iluminismo racionalista” do século XVIII – o facto é que, sobretudo a partir de meados do século XX, as tecnologias do “tempo real” impuseram um “regime radical” no qual a “atenção”  se tornou, em si, um “valor económico”. Foi o economista – e Prémio Nobel – Herbert Simon quem, pela primeira vez, explicitou o modo como numa sociedade em que a informação se torna abundante a consequência mais imediata é transformar a “atenção” num “recurso escasso” e, portanto, “valioso”. Várias décadas depois (Herbert Simon formulou estas ideias nos anos 70), a “economia da atenção” tornou-se hoje numa área de estudo académico e uma componente de análise que entra em qualquer estratégia de comunicação ou de marketing.

Num mundo em que a “atenção” se tornou, portanto, num bem escasso e, porventura, o mais valioso entre todos, é essencial – também para o sector cultural - ser capaz de compreender, definir e integrar este dado central da “nova economia” nas suas estratégias e actividades.

A outra dimensão que importa considerar tem a ver com a progressiva desvalorização da ideia de “propriedade” – um conceito até agora central nas sociedades capitalistas – em favor da noção de “acesso”.

Jeremy Rifkin dedicou ao assunto um livro, intitulado “The of Age of Acess - The New Culture of Hypercapitalism, Where all of Life is a Paid-For Experience”, editado em 2001, no qual antecipa esta tendência mostrando como, na evolução para a “economia do conhecimento”, a valorização dos “bens imateriais” (ideias, informação, saber, etc.) - enquanto verdadeiros motores deste novo modelo económico - é acompanhada por uma acentuada perda de valor dos “bens físicos” os quais, dependem agora, cada vez mais, para efeitos da sua “eficiência” e “diferenciação”, em termos de mercado, da capacidade de incorporar “conhecimento” (sob a forma de inovação tecnológica, design, etc.).

Nesta transferência de “valor”, o ”capital intelectual” ganha assim um ascendente sobre todas as outras formas antecedentes de capital e, nesse processo, que é acompanhado pela “virtualização” da economia capitalista através da extensão, aprofundamento e complexificação da economia digital e das redes electrónicas, mais importante do que a “posse” é o “acesso” (à informação, ao conhecimento e às redes).

Esta alteração de paradigma só é possível, no entanto, porque, a “informação”, enquanto “recurso económico” opera segundo uma lógica distinta da dos “bens” e “recursos” que configuraram as fases anteriores do modelo capitalista.  Se estes eram (e ainda são) caracterizados pela sua finitude – instituindo, por isso, uma dinâmica económica que assenta na sua “escassez” – já a “informação”, devido à sua “imaterialidade”, custos residuais e efeitos multiplicadores institui uma “economia da abundância”.

Esta “abundância” desloca, por sua vez, a criação de “valor” para a capacidade de produzir, de modo contínuo, mais “conhecimento” e, através dele, gerar inovação. Ora o “conhecimento” é, por natureza, um “sistema aberto”, em constante movimento, actualização e renovação. Daí que, o modelo “proprietário” em que assentava (e assenta) a “economia da escassez” seja hoje confrontado, no modelo emergente da “economia da abundância”, por uma lógica de “acesso” pois na “nova economia” o que importa, acima de tudo, é poder integrar o “fluxo” ininterrupto de ideias, conhecimentos e informações e, através dessa partilha, reactualizar, reformular, recriar e gerar novos conceitos e produtos.

Porém, o livro de Jeremy Rifkin comporta ainda outras dimensões que importa reter quando analisamos a forma como a noção de “acesso” tem ganho aceitação e se tornado progressivamente operativa nos modelos de consumo contemporâneo.

No próximo artigo iremos abordar estas outras dimensões e o seu impacto nos modelos actuais do consumo  cultural.

 

Rui Trindade