OS MUSEUS E A ECONOMIA DIGITAL
Os Museus e a economia digital
A Knight Foundation anunciou no passado mês de Abril que iria disponibilizar a oito museus norte-americanos uma verba de quase um milhão de dólares com o objectivo de os ajudar a conceber, planear e implementar estratégias que apoiem os seus esforços no sentido de melhorar e alargar a sua relação com o público e as comunidades envolventes através das tecnologias digitais.
A verba destina-se, sobretudo, a permitir que os museus contratem especialistas altamente capacitados por forma a que os museus possam usar as tecnologias de modo mais eficaz e criativo tanto no que diz respeito à interacção com o público no quadro das exposições apresentadas como na perspectiva de alargar o número de visitantes através da criação de vínculos mais consistentes nas redes sociais.
Este apoio da Knight Foundation é apenas mais um indicador de como os museus compreendem hoje a absoluta necessidade de se repensar e adequar ao novo “ecossistema” económico, social e cultural decorrente da emergência das “sociedades em rede” e do impacto das tecnologias digitais.
Temos visto como, em anos recentes, grandes instituições museológicas têm investido na digitalização e disponibilização das suas colecções online, criado plataformas para “visitas virtuais” através da internet, incorporado as mais recentes tecnologias nas suas estratégias expositivas (nomeadamente as designadas de “realidade expandida” (Realidade Aumentada e Realidade Virtual) e assumido a necessidade de uma presença contante nas redes sociais.
O que importa compreender, no entanto, é que este tipo de investimento resulta da percepção de que não apenas se vive hoje num novo tipo de economia, cuja “cadeia de valor” se alterou substancialmente, como os modelos de “consumo cultural” se alteraram, também eles, de forma radical. Do que se trata, portanto, não é apenas de proceder a um ajustamento circunstancial mas de reformular por completo conceitos e estratégias. Algo que afecta todas as “indústrias culturais” e o “sistema das artes” por igual.
Este entendimento parece hoje adquirido. Num inquérito realizado, em 2012, pelo centro de estudos norte-americano Pew Research Center, e que abrangeu 1.244 instituições do sector cultural daquele país (artes visuais, música, teatro, dança, literatura, fotografia, arte digital), as conclusões tornavam claro que a internet e as redes sociais se tinham tornado já num factor estruturante da sua actividade permeando todas as áreas de acção das organizações (programação, curadoria, serviços educativos, marketing, patrocínios, etc.).
As instituições inquiridas reconhecem ainda nesse inquérito, e de forma unânime, que “as tecnologias digitais e a internet constituem um factor de disrupção do mundo tradicional das artes” e implicam não apenas uma profunda mudança organizacional como obrigam a uma reconsideração do que, até agora, se considerava ser o “campo das artes”.
Este último ponto é particularmente relevante pois evidencia uma tomada de consciência perante uma nova realidade na qual a criação e a produção cultural já não é delimitada pelas “convenções” instituídas, isto é, pelos “agentes culturais” e pelo “sistema das artes” através das suas formas de “representação” tradicional mas, pelo contrário, se vê reconfigurada num “sistema aberto” em que não apenas a criação artística mas também a sua avaliação e crítica se tornou objecto de uma “conversa” que envolve toda a comunidade e que, no limite, instiga uma reconsideração sobre o que a “convenção” anterior estabeleceu como sendo “arte”.
Este novo contexto é, em grande parte, resultado da “arquitectura participativa” que definiu o modelo da chamada “Web 2.0”. Durante a primeira fase da Web, ou seja, entre meados da década de 90 e o início do novo século, a internet foi sobretudo entendida como apenas mais um media. Embora possuindo características muito próprias, nomeadamente no domínio da interactividade, a internet mantinha uma lógica vertical de comunicação entre os produtores de conteúdos e o público consumidor. As instituições e organizações culturais, tal como todos as outras entidades presentes na Web, posicionaram-se, portanto, neste novo media, entendendo-o apenas como um prolongamento das suas estratégias de marketing e comunicação.
No entanto, a Web 2.0, caracterizava-se (e caracteriza-se) por uma “arquitectura participativa” de cariz radicalmente inovador e passou a disponibilizar aos utilizadores ferramentas que lhes permitiam intervir no espaço cibernético enquanto produtores/distribuidores de conteúdos. Blogues, wikis e redes sociais convulsionaram a dinâmica da Web rompendo com o modelo vertical de comunicação anterior e instituiram uma inédita “horizontalidade” comunicacional. Criava-se, deste modo, um “modelo relacional” e de interacção multipolar que obrigou todos os actores do sistema cultural a uma revisão e adequação das suas lógicas de funcionamento.
Mais de uma década depois do surgimento da Web 2.0, o dado fundamental a reter no inquérito a que mais acima nos referimos, não é que 99% das instituições disponham de um website mas que 97% estejam presentes em múltiplas redes sociais (Facebook, Twitter, You Tube, Instagram, etc.). O que significa, no entanto, “estar presente” nas redes sociais? Significa, acima de tudo, “desenvolver uma relação” e daí que convenha sublinhar que 45% das organizações referem colocar diariamente um post nas redes sociais e 25% entre elas coloquem mais do que um por dia. O que isto significa ainda é que, em termos funcionais, as instituições passaram a ter de investir nesta “relação” pois mais do que “divulgar” iniciativas através das redes do que se trata é de manter uma “conversa” permanente e fluída com a comunidade, em geral, e os públicos-alvo em particular (58% das organizações consideram o investimento nas redes sociais como sendo “muito importante” para a sua actividade).
Importa ainda notar que esta “conversa”, que assume múltiplas formas e é mantida com interlocutores diversos, pode mesmo assumir um papel relevante na própria definição dos “programas” das organizações. Por exemplo, 52% das instituições inquiridas afirma usar a internet e as redes sociais para a elaboração do seu programa de actividades, testando ideias e recolhendo sugestões de iniciativas e temas antes da tomada de decisões (o que o inquérito designa por “crowdsourcing ideas”). Por outro lado, esta “conversa” é particularmente intensa quando se desenrolam as actividades programadas (82% das instituições sublinham a importância das redes sociais “antes, durante e depois dos eventos”). Na verdade, o que está aqui em causa não é apenas uma aferição constante dos interesses, expectativas ou opiniões dos vários públicos (dos simples “consumidores” aos eventuais “patrocinadores”) de modo a afinar estratégias programáticas. Do que se trata é de, para além de detectar e identificar estes aspectos, adquirir um conhecimento preciso e detalhado do “perfil” dos públicos e, por via disso, “extraír valor” dessa informação.
De forma abreviada e sintética, o que este indicadores sinalizam é, segundo alguns autores, a passagem de uma “economia da representação” – que foi a que prevaleceu durante mais de um século e que se definia por uma “cadeia de valor” determinada, organizada e defendida pelos diversos agentes culturais - para uma “economia da relação” em que não apenas os agentes culturais já não controlam, em exlusivo, a produção dos bens culturais como o “valor económico” destes já não reside nos produtos em si mas na capacidade de “extrair valor” das dinâmicas criadas pelas redes sociais (sobretudo pela possibilidade de, a partir da informação colectada sobre os comportamentos, gostos, preferências e dinâmicas das diversas “comunidades de interesses” dos consumidores, poder conceber e gerar “experiências” e “partilhas” cuja “valia” e “monetarização” suplantam os retornos económicos obtidos por via do consumo de bens culturais “tradicionais”).
RUI TRINDADE