INDÚSTRIAS CULTURAIS 1

INDÚSTRIAS CULTURAIS: DA ECONOMIA DA REPRESENTAÇÃO À ECONOMIA DA RELAÇÃO

As transformações ocorridas nas últimas décadas nas Indústrias Culturais resultam da conjugação de vários factores que importa analisar.

Em primeiro lugar, é preciso considerar a confluência da evolução tecnológica com a emergência das “sociedades em rede” (na definição de Manuel Castells), confluência essa que instituiu um novo paradigma, o qual provocou uma disrupção no modelo tradicional de operar das Indústrias Culturais e afectou, de modo substantivo, a criação, a produção e a distribuição dos produtos culturais.

O traço mais relevante da mudança operada diz sobretudo respeito ao modo como os conteúdos culturais foram separados dos seus suportes físicos (algo que é particularmente evidente nos sectores da música, do audiovisual e do livro mas que afecta igualmente, de modo indirecto, todas as áreas da produção cultural).

Esta desmaterialização dos produtos culturais – que acompanha a transformação, mais genérica, do modelo industrial nascido na viragem do século XIX para o século XX para a “sociedade da informação” e a “economia do conhecimento” do século XXI – implicou uma reformulação (ainda em curso) dos “modelos de negócio” em que as Indústrias Culturais assentavam e uma redefinição das “cadeias de valor” existentes.

A consequência principal desta passagem dos “átomos para os bits” – que sinaliza uma dimensão fundamental da mudança em curso - é que os produtos culturais perderam a sua “autonomia” pois ao transformarem-se em “informação” passaram a competir directamente, e de forma indistinta, com uma miríade de outros produtos e serviços que fazem parte do fluxo ininterrupto que caracteriza a “economia digital” nas “sociedades em rede”.

Com efeito, os produtos culturais não são hoje, no limite, mais do que “ficheiros electrónicos” e “aplicações informáticas” e fazem parte, portanto, de um novo ecosistema cuja lógica funcional e económica opera segundo regras muito distintas das do paradigma industrial anterior.

Esta perda de “autonomia” tem sido, por seu turno, acompanhada por uma crescente “desvalorização” dos conteúdos culturais (um efeito que é comum, aliás, a todo o tipo de conteúdos digitais).

Uma das carcterísticas axiais da economia digital,  reside na possibilidade de replicar ad infinitum um qualquer conteúdo  o que faz com que o seu custo marginal tenda para zero. No entanto, se a diminuição do custo unitário de um qualquer conteúdo digital (em consequência do valor residual imputável a cada cópia) permite uma maior competitividade da oferta (pela consequente baixa de preços) a verdade é que este factor, que no modelo industrial pré-digital estava no cerne da dinâmica de mercado prevalecente tem, na “nova economia”, o efeito perverso de comprometer o retorno do investimento pois a “abundância”, isto é, o carácter ilimitado da oferta, conduz, por seu turno, a um esmagamento das “margens de lucro” ( o que permite a um autor como Chris Anderson afirmar, no seu livro “Free – The Future of a Radical Price”(ed. Hachette Books, 2009) especular sobre como esta “nova economia” tenderá para um modelo de “gratuidade absoluta” em que o “valor económico” será determinado por parâmetros muito diferentes dos actuais).

Para Jeremy Rifkin, que tem vindo a analisar esta mudança de paradigma (veja-se, por exemplo, o seu mais recente livro, “The Zero Marginal Cost Society”, St. Martin's Press, 2014) o que está em curso não é um mero ajustamento do capitalismo contemporâneo a novas “condições de produção” mas uma ruptura tão profunda no modelo socio-económico existente quanto o foi a Revolução Industrial do século XIX.

Acompanhando a desmaterialização do produtos culturais e a sua inserção num novo modelo económico, o segundo aspecto que importa considerar, prende-se com uma das características centrais que define este novo “ecossistema” contemporâneo, nomeadamente, o da “sociedade em rede” e, em particular, o papel da  “arquitectura participativa” criada pela “Web 2.0”.

 Enquanto na primeira fase de desenvolvimento da Web, que subsistiu até à viragem para o século XXI, o modelo de acesso e de consumo dos conteúdos nela existentes manteve uma lógica algo semelhante ao que existia noutros suportes tradicionais (imprensa, televisão, etc.) - isto é, apesar de haver de novos mecanismos que permitiam alguma interactividade, os utilizadores continuavam a ser essencialmente consumidores passivos e o entendimento dos produtores de conteúdos, na altura, era de que a internet constituia apenas mais um “canal” de difusão a somar aos já existentes – a partir de 2004, começa a emergir um outro modelo no qual os consumidores se tornam, também eles, “produtores” de conteúdos.

Esta nova configuração - marcada inicialmente pelo aparecimento de blogues e projectos participativos como a Wikipedia e, pouco depois, pelas primeiras “redes sociais”, como o “My Space”, o “You Tube” ou o “Facebook” – operou uma mudança radical, a vários níveis, nas formas de consumo da informação e obrigou a um redesenho dos modelos de negócio pré-existentes.

Por um lado, os produtores de conteúdos “tradicionais” viram-se, subitamente, confrontados com uma avalanche de “produtos” que tinham origem nos próprios “consumidores” e que disputavam um espaço que anteriormente lhe pertencia em exclusivo.

Por outro lado, e  com um impacto muito mais dramático no seu modelo de operar, estes produtores/consumidores (“prosumers”, como vieram a ser designados) dinamizaram um modelo “horizontal” de partilha de conteúdos através das redes que rompia com a modalidade clássica (“vertical”) até então dominante (e que assentava na separação entre “produtores” de um lado e “consumidores” do outro).

Esta nova realidade teve ainda uma outra consequência que importa sublinhar. Com efeito, a horizontalidade comunicacional permitida pelas “redes sociais” gerou também uma dinâmica em que os “consumidores” não se tornaram apenas criadores de novos conteúdos mas igualmente “produtores” de opinião.

Desta forma, aquele que era duns pilares fundamentais do “sistema cultural” (e não só), a saber, a existência de uma “critica especializada” que operava enquanto caucionadora da qualidade dos produtos culturais e formadora de “opinião”, via-se subitamente “desafiada” (para não dizer, ultrapassada e marginalizada) por um sistema em que a avaliação, a caução e o poder de influênciar a “opinião” do público tinha origem no próprio “público”, menorizando e desvalorizando o papel dos tradicionais “gatekeepers”, isto é, daqueles a quem cumpria, no anterior modelo, “filtrar” a produção dos conteúdos culturais e “orientar” as escolhas dos “consumidores”.

De forma talvez ainda mais decisiva, e em consequência das características deste novo ecosistema – a funcionar, cada vez mais, em “tempo real” e com uma quase ilimitada capacidade de aceder e partilhar informação – os “consumidores” adquiriram um estatuto que obrigou as instituições e os operadores de mercado a integrá-los, a priori, e desde o início, na definição, planeamento e articulação das suas estratégias e nas suas escolhas programáticas e/ou curatoriais.

A conjugação destes factores levou a uma progressiva, conturbada e ainda inacabada mudança nos modelos de negócio que marcaram a maior parte da “economia da cultura” que vigorou desde o início do século XX.

Como já tivemos oportunidade referir em artigo anterior, o que se verificou foi uma “mudança como a passagem de uma “economia da representação” – que foi a que prevaleceu durante mais de um século e que se definia por uma “cadeia de valor” determinada, organizada e defendida pelos diversos agentes culturais -  para uma “economia da relação” em que não apenas os agentes culturais já não controlam, em exlusivo, a produção dos bens culturais como o “valor económico” destes já não reside nos produtos em si mas na capacidade de “extrair valor” das dinâmicas criadas pelas redes sociais (sobretudo pela possibilidade de, a partir da informação colectada sobre os comportamentos, gostos, preferências e dinâmicas das diversas “comunidades de interesses” dos consumidores, poder conceber e gerar “experiências” e “partilhas” cuja “valia” e “monetarização” suplantam os retornos económicos obtidos por via do consumo de bens culturais  “tradicionais”)”.